Apocalipsis

Jean [...] Gold
3 min readMay 31, 2024

--

No meu último jardim numa varanda de cinco metros quadrados de um andar alto os pássaros vêm me visitar. Em busca de água, flor, ancestralidade ambiental. Ou por pura curiosidade.

Meu preferido é o cambacica. Quase dá pra chegar perto, parece não ter medo. Com sua linguinha fininha e longa, saltita doce e suave com suas plumas amarelo e marrom, como seu parente bem-te-vi, esse que só vi algumas vezes. Um pardalzinho, ali nunca vi. E tem o sanhaço cinza que também aparece pra xeretar. Aprendi seus nomes nessas visitas.

Lá muito alto esticando bem o pescoço voa o urubu, menos alto as andorinhas rasgam o horizonte. Os urubus silenciosos, meio atrapalhados, meio singelos. As andorinhas surfistas que cantam sussurros de assobios, anúncio do verão.

E tem o carcará! (Que já me vem aquela música). Se você ver um carcará, pode ter certeza que há outro por perto. Casal. Já o vi sendo expulso de uma árvore ou antena por um passarinho do tamanho das suas unhas predadora, já o vi comendo carne, imaginando de onde vem aquela comida: um rato, um filhote de pássaro, um resto de lixo. O carcará come carne viva, o urubu come carne morta. Só não está congelada.

Ah, lembro-me da primeira vez que fitei de perto os pequenos olhos pretos de uma maritaca no galho da buganvila rosa. Senti a pureza da inocência. Esse o que parecia um filhote descansando para a próxima algazarra cheia de farra entre as copas das árvores com frutos que ainda existem por aí.

Agora às plantas do meu jardim. Elas são misteriosas, brotam, florescem, murcham e morrem, de maneiras diferentes. E apesar dos mesmos cuidados. Algo sempre me escapa. Umas gostam mais de luz direta, outras suave de fim de tarde. Umas, o vento. Outras de ficar quietinhas no canto. Menos água ou água todo dia.

Há uma diferença entre regar e borrifar! Uma é sede e fome, outra é prazer e tesão. O som da água perfurando a terra, pousando em gotículas na folha da planta (sobretudo quando impermeável) ou se espalhando em chuvisco na atmosfera se transformando em um sensitivo diálogo de balbucias.

Crio vida.

E também a morte.

Cochonilhas, pulgões, lesmas, formigas, tenho que matar. Já matei no espremer de meu dedo, que não é verde. Mas já procurei alternativas. Já prendi lesmas para largá-las em algum pedaço de terra vizinha. Já lancei insetos da janela querendo acreditando que o vento ameniza sua queda. E já usei veneno. Lacraias agora estou deixando viver. Borboletas, mariposas, abelhinhas, joaninhas, claro, são benvindas. Até a lagartixa já apareceu uma vez nas sombras das plantas. Minha amiga.

Morcego também aparece de vez em quando quando numa tarde de noite vazia. Uma vez assistindo um filme no escuro, senti uma presença entrando fortuitamente em casa. Acendi as luzes e lá estava ele se debatendo na cozinha. Tentando lhe mostrar a saída, apaguei a televisão e as luzes e fiquei por alguns instantes esperando encolhido no sofá. E senti mais uma vez sua invisibilidade passar por mim.

A mariposa. Velha conhecida. Uma noite ela e eu quase nos chocamos no meio da sala. Era uma enorme cinza escura, parecia assustadora, eu gritei aquele grito alto e curto. E ela, assustada, sai do mesmo jeito que entrou.

Meu microbioma. Meu bunker. Meu espaço sideral. Sou um pequeno deus. Não curto. Uma vida com uma moral de mais algum deus. Não.

São parte de mim, graças a mim, por minha causa, por mim e para mim. E talvez pra você também.

--

--